segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo XIII

Acordo sem conseguir abrir os olhos. O sol inunda todo o quarto.
A muito custo levanto-me e cambaleio até à cozinha. O cheiro a café acabado de fazer inunda a casa.
Movo-me como um autómato. Pego uma caneca que encho de café e dirijo-me para a sala. Como sempre, um bilhete da Joana em cima da mesa.

"Sabes que te amo não sabes? Quando sair vou às compras, por volta das seis estou em casa. Amo-te, temos que falar."

O dia começa igual a todos os outros. Dobro o bilhete, amarroto-o e jogo-o no lixo como faço sempre. Não sei se ela repara, mas a verdade é que não quero saber. Estes bilhetes são ridículos, já o eram antes, muito mais o são agora.
O café começa a fazer efeito e começo a recordar todo o dia que passou. A Inês, o farol, a Joana na praceta a falar, os corvos, o vulto sinistro. Arrepio-me. Preciso fazer alguma coisa. Tenho que saber o que aconteceu ontem.
Tomo um duche rápido e decido ir falar de novo com o senhor João. Não era normal ele não se lembrar de nada.

Embora o sol brilhasse, o dia não estava ameno. O buliço normal da manhã ocupava toda a rua. Pessoas carregadas de compras, carros comerciais a fazerem entregas, o carteiro, varredores de rua, tudo aparenta a normalidade de sempre. Até eu me sinto normal, o mesmo andar dormente, errático, ora lento ora rápido, de os olhos sempre no chão.
Acendo um cigarro e entro no café.

- Bom dia Nucha, o teu pai está?
- Olá, não sei nada dele. Saiu, acho que foi à praça comprar o peixe para os almoços.
- Ok, dá-me um café então.

De cigarro na boca e bica fumegante, olho a mesa onde ontem tinha estado com ela. Aproximo-me e sinto o seu cheiro. Como se ainda ali estivéssemos. Toco a cadeira onde ela se sentou, o assento, as costas, suavemente com os meus dedos. Fecho os olhos, sinto-a.

- Sr António? Está tudo bem?

A voz irritante da adolescente Nucha devolve-me à realidade. Apetece-me ofendê-la, como se atrevia a retirar o meu tempo com a Inês?

- Tá sim Nucha, olha, quero pagar este café e o de ontem, que me esqueci de pagar.
- Sim, o meu pai disse-me que estava aqui um papelinho com os fiados de ontem, deixe-me só ver se o encontro.

Olho-a impaciente enquanto rebusca uma pequena prateleira de plástico atolada em papéis, facturas, catálogos, lixo em geral. Distraio-me a pensar em como vou fazer para encontrar a Inês, talvez vá à sua antiga casa, que era dos pais embora não vivessem lá. Ou podia procurar a Ju, que era a sua melhor amiga e trabalhava no hospital, se bem que a última vez que a vira fora há cinco anos.
Com o seu sorriso de adolescente irritante e aparelho azul nos dentes, Nucha mostra-me o papel com um ar de triunfo, como se tivesse descoberto a pólvora.

- Aqui está, tava difícil... hihihihi
- Nucha, são dois cafés, nada mais, eu já te tinha dito, o de hoje e o de ontem.
- Não sr António, com o de hoje são três, veja lá, o meu pai escreveu que o senhor pagava o seu e o de uma senhora que esteve consigo que também saiu sem pagar. Tá a ver?
- Mostra-me já isso!

A prova que necessitava, afinal, tudo tinha sido real. Aquele mísero papel, escrito por um dono de café que me mentira não sei porquê, mostrava que o dia de ontem, em toda a sua estranheza, tinha acontecido mesmo...