sexta-feira, 10 de abril de 2009

Sem Ti (r) - capítulo XIV

Pago os cafés e saio para a rua. Vejo ao longe o senhor João que voltava do mercado com um saco na mão. Dirijo-me a ele. Recebe-me como sempre com um sorriso, mas desta vez não retribuo.
- Mas você pensa que anda a gozar comigo? Viu-me ou não me viu com a Inês ontem à tarde?
- Do que estás a falar António?
- Dos três cafés que tive que pagar! Da prova em como estive com outra pessoa ontem a tarde naquela mesa onde me sento sempre.
O seu semblante fica carregado e denotando cansaço na voz diz-me:
- Temos que falar, vem até minha casa.
Sigo-o em silêncio. Subimos ao segundo andar do prédio em que situava o café e sento-me num sofá antigo na saleta que muito provavelmente era utilizada como escritório. Não tem muitos livros nas estantes. São mais os papéis empilhados, os arquivos mortos com facturações e balanços que propriamente romances ou ensaios. Também, o que seria de esperar de um velho comerciante que tinha feito a sua vida à base de números? Vidas matemáticas raramente dão lugar às letras e quando o dão são letras cruas, semi mortas, desprovidas de qualquer sentido sentimental ou figurado. Há, no entanto, um livro que me desperta a atenção, aliás, por detrás encontram-se mais, o autor é sempre o mesmo, Allan Kardec, dentro de um deles, está uma foto do senhor João e de mais duas pessoas junto ao túmulo do autor em Paris. Sinto-me intrigado como é que um vulgar dono de café se pode interessar no ocultismo, mais propriamente no espiritismo.
Volto a pôr o livro no lugar no preciso instante em que o senhor João volta da cozinha e se acerca de mim.
- Senta-te António. De facto, não estiveste sozinho ontem a tarde.
- O que se está a passar? Porque me mentiu?
- Eu não te menti, só queria que te apercebesses da verdade por ti. Não estiveste sozinho, mas também não estiveste acompanhado, ou melhor, só houve um café tirado na máquina.
- Mas que história é essa? Não estou a entender nada…
- Deixei três cafés apontados, precisamente para suscitar a tua curiosidade, mas está na hora de te contar a verdade.
- Acho bem.
- Então é assim, a Inês esteve de facto contigo ontem, mas ela não está mais neste mundo, não está mais no nosso plano. O vosso sentimento prende-a cá e tu precisas de a deixar ir.
- A Inês morreu?
- António… a Inês matou-se…. Fez precisamente ontem sete anos…

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo XIII

Acordo sem conseguir abrir os olhos. O sol inunda todo o quarto.
A muito custo levanto-me e cambaleio até à cozinha. O cheiro a café acabado de fazer inunda a casa.
Movo-me como um autómato. Pego uma caneca que encho de café e dirijo-me para a sala. Como sempre, um bilhete da Joana em cima da mesa.

"Sabes que te amo não sabes? Quando sair vou às compras, por volta das seis estou em casa. Amo-te, temos que falar."

O dia começa igual a todos os outros. Dobro o bilhete, amarroto-o e jogo-o no lixo como faço sempre. Não sei se ela repara, mas a verdade é que não quero saber. Estes bilhetes são ridículos, já o eram antes, muito mais o são agora.
O café começa a fazer efeito e começo a recordar todo o dia que passou. A Inês, o farol, a Joana na praceta a falar, os corvos, o vulto sinistro. Arrepio-me. Preciso fazer alguma coisa. Tenho que saber o que aconteceu ontem.
Tomo um duche rápido e decido ir falar de novo com o senhor João. Não era normal ele não se lembrar de nada.

Embora o sol brilhasse, o dia não estava ameno. O buliço normal da manhã ocupava toda a rua. Pessoas carregadas de compras, carros comerciais a fazerem entregas, o carteiro, varredores de rua, tudo aparenta a normalidade de sempre. Até eu me sinto normal, o mesmo andar dormente, errático, ora lento ora rápido, de os olhos sempre no chão.
Acendo um cigarro e entro no café.

- Bom dia Nucha, o teu pai está?
- Olá, não sei nada dele. Saiu, acho que foi à praça comprar o peixe para os almoços.
- Ok, dá-me um café então.

De cigarro na boca e bica fumegante, olho a mesa onde ontem tinha estado com ela. Aproximo-me e sinto o seu cheiro. Como se ainda ali estivéssemos. Toco a cadeira onde ela se sentou, o assento, as costas, suavemente com os meus dedos. Fecho os olhos, sinto-a.

- Sr António? Está tudo bem?

A voz irritante da adolescente Nucha devolve-me à realidade. Apetece-me ofendê-la, como se atrevia a retirar o meu tempo com a Inês?

- Tá sim Nucha, olha, quero pagar este café e o de ontem, que me esqueci de pagar.
- Sim, o meu pai disse-me que estava aqui um papelinho com os fiados de ontem, deixe-me só ver se o encontro.

Olho-a impaciente enquanto rebusca uma pequena prateleira de plástico atolada em papéis, facturas, catálogos, lixo em geral. Distraio-me a pensar em como vou fazer para encontrar a Inês, talvez vá à sua antiga casa, que era dos pais embora não vivessem lá. Ou podia procurar a Ju, que era a sua melhor amiga e trabalhava no hospital, se bem que a última vez que a vira fora há cinco anos.
Com o seu sorriso de adolescente irritante e aparelho azul nos dentes, Nucha mostra-me o papel com um ar de triunfo, como se tivesse descoberto a pólvora.

- Aqui está, tava difícil... hihihihi
- Nucha, são dois cafés, nada mais, eu já te tinha dito, o de hoje e o de ontem.
- Não sr António, com o de hoje são três, veja lá, o meu pai escreveu que o senhor pagava o seu e o de uma senhora que esteve consigo que também saiu sem pagar. Tá a ver?
- Mostra-me já isso!

A prova que necessitava, afinal, tudo tinha sido real. Aquele mísero papel, escrito por um dono de café que me mentira não sei porquê, mostrava que o dia de ontem, em toda a sua estranheza, tinha acontecido mesmo...

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo XII

Fico a assistir à cena enquanto fumo o cigarro.
Nota-se a cumplicidade entre ambos, mas o que inicialmente pensava ser o verdadeiro pai do filho que a Joana carregava dentro de si, revelava-se agora uma mulher. Um pouco mais alta que ela, era a mais activa no diálogo. Joana ouvia-a cabisbaixa. Tinha que ver quem era.
Vou a sala, pego os óculos que uso só para conduzir e que invariavelmente ficam na mesa de apoio junto ao sofá, e volto para a varanda.
O vento sopra agora forte. O espanta espíritos dança e tilinta qual bailarina, olho o parque de estacionamento, sempre com os mesmo carros. Vazio. Onde foram? Debruço-me na varanda, olho para todos os lados, mas não está ninguém na rua. Um silêncio ensurdecedor enche a atmosfera da pequena praceta onde todos sem excepção estacionam após um longo dia de trabalho.
Viro as costas. Passo a mão pelo cabelo. Onde poderiam estar?
Sem me permitir qualquer reacção, algo me empurra contra o vidro da porta de acesso da sala à varanda. O silêncio ensurdecedor foi agora substituído por crucitar de centenas de corvos que me tentam agarrar e levar. Afasto-os furiosamente.
Deito-me no chão e rastejo para dentro da cozinha. Fecho a porta e vejo-os investirem furiosamente contra o vidro.
Levanto-me, examino-me ao pormenor, mas não estou ferido. Nem uma pena de corvo. Nem um arranhão.
De repente todas as luzes se apagam. Na cozinha, na casa, no prédio, na rua.
O silêncio de novo. Parado na minha frente, a pouco mais de dois metros de mim, um vulto. Altivo, gabardine, chapéu, olhos semi-cerrados vermelho brilhantes.
Engulo em seco. Estou em pânico mas a única reacção que tenho é,

- Quem está aí?
- Ahahahahahah já não te lembras de mim António?
- Quem és tu?
- É o último aviso. Deixa-a ir. O lugar dela não é aqui.

Nada daquilo me fazia sentido. Quem era aquele homem, o que me queria, que estava ali a fazer?
Aproximo-me dele e um cheiro forte que já tinha sentido a impregnar a sala, torna-se insuportável.

- Chega!! Estás avisado!

Todas as luzes se acendem! Ofuscado pela luminosidade repentina, levo a mão aos olhos. Quando me recomponho tudo está igual. O vulto desaparecera, o cheiro também, só o meu medo continua.
Vou de novo a casa de banho, acendendo todas as luzes no caminho.
Lavo a cara, o pescoço, os olhos, a boca. Fico a ver uma gota de sangue que me cai do nariz e resvala pela bacia deixando atrás de si um rasto macabro.

Vou para o quarto. Olho a meia luz a cama onde a Joana dorme profundamente.
Fico de pé parado, a olhá-la por um tempo que perdi a conta.
Não sei o que pensar, o que fazer. Teria sido tudo imaginação minha?
Sento-me na cama, abro a gaveta da mesa de cabeceira, tomo dois comprimidos que retiro de uma caixa semi desfeita.
Deito-me a seu lado, fecho os olhos, e deixo a fórmula química fazer o deu milagre.
O meu ultimo pensamento da noite vai para a Inês. Onde poderia ela estar?

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo XI

- Onde estiveste? Estás encharcado...

Sabia-me bem aquele calor humano. Um calor humano que as paixões não trazem. O calor de quem ama pela amizade e não pelo ardor.
Joana, minha eterna companheira. Depois de tudo o que te tinha dito e feito, o amor e compaixão para comigo enternecem-me, desarmam-me e sou uma criança nos teus braços. Leva-me contigo, apaga-me a memória desta noite, o sofrimento desta vida. Sinto-me triste por não te conseguir amar.
Chegamos a casa. Dispo-me e enfio-me na cama. Não tomo banho. Quero o cheiro dela impregnado em mim. O sabor na minha boca. O calor que sinto só de a pensar nua à minha frente.
A Joana fala de algo que nem oiço. Estou longe, não quero saber.
Adoro a sua presença, a forma como me idolatra, como me ama, como faz tudo por mim. A forma como prescinde de si para me dar tudo. Preciso dela, da sua energia, para a sugar e continuar a viver no meu mundo. No mundo só meu e da Inês. Minha Inês... onde estás?

- Queres falar?
- Do quê?
- Do nosso bébé.
- Não é nosso, eu não posso ter filhos.

Silêncio sepulcral. Viro-me para o lado, ajeito a almofada, acaricio os meus cabelos, imaginando os seus dedos longos, molhados pela tempestade. Os olhos pesam-me, a alma dói-me, que vou fazer amanhã?

- Desculpa....

Não lhe respondo. É-me indiferente se dá o seu corpo a outro.

Adormeço num sono profundo. Pesadelos, toda a noite pesadelos. Gritos, sangue, eu a fazer amor com a Inês morta, caída na falésia. A Joana grávida. Um homem sem rosto, de bata, uma luz ofuscante, crianças a atirarem-me pedras. Um supermercado. A polícia. Eu a fugir num carro que não é o meu. Um grito ensurdecedor. Quero gritar, não consigo, o seu rosto, frente a frente com o meu, olhos abertos, a saírem das órbitas, uma súplica, SALVA-ME!

Acordo mergulhado em suor. Levanto-me e vou lavar a cara. A Joana não está. Onde pode ter ido, a esta hora... 03h33m... a mesma de todo os dias.
O zumbido da luz da casa de banho é insuportável. Volto para a cama.

Tento adormecer. Não consigo. Vou fumar um cigarro à varanda.
Os cães ladram ao longe e afugentam um ou outro gato. Ao longe duas pessoas discutem e esbracejam junto a um carro. O meu carro. Um arrepio confuso, de frio e espanto, faz-me estremecer.
À distância, no frio, na noite reconheço na perfeição a silhueta da Joana...

domingo, 25 de janeiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo X

Como um louco, à chuva, ao vento, ao medo e à angustia, grito de peito cheio por ela. Espreito a falésia supondo o pior, e nada. Só o vento, a chuva e o mar irado me fazem companhia.
A minha cabeça parecia explodir e o coração angustiado batia como um louco, onde estás Inês?...
Um mundo de possibilidades povoa os meus medos. A falta de lógica de toda aquela situação estava a deixar-me louco. Nem 5 minutos tinham passado desde a minha atitude irreflectida e nem rasto dela... para onde poderia ter ido.
Na estrada, único caminho de acesso, não a tinha visto. Teria caído, ou saltado? A vergonha te-la-ia levado a um acto assim desesperado?
Sem saber o que fazer, meto-me no carro e sigo para a casa dela. O facto de ser impossível ter lá chegado antes de mim, não se punha como hipótese. Um homem desesperado não pensa, age, mesmo que a atitude seja a menos lógica e mais estúpida.
Sinto que voei aqueles quilómetros.
Num instante chego à rua do número 34, que durante a tarde ela me tinha referido. Como de costume, o senhor João carregava os últimos sacos do lixo do café, mesmo ao lado da porta da nova casa de Inês e onde nessa tarde a minha vida começara a mudar.

- Senhor João.... viu a Inês?
- Olá António, vi quem?
- A Inês senhor João, a rapariga que esteve comigo no café esta tarde.
- Contigo no café? Tu estás bem António? Tu estiveste sozinho esta tarde...
- Senhor João, deixe-se de brincadeiras, isto é coisa séria. Viu-a passar aqui?
- Oh António, queres entrar e beber algo? Estás com uma cara...
- Deixe-se de merdas!! Viu-a ou não???
- Juro pela minha santa mãezinha que estiveste sozinho esta tarde homem! Entraste, bebeste o café e saíste esbaforido e nem te lembraste de pagar, parecia que tinhas visto um diabo!

Um arrepio na espinha, faz-me estremecer todo. O senhor João acreditava mesmo que eu tinha estado sozinho naquela tarde. Estava louco, só podia.
Deixo-o na beira do passeio e dou-lhe as costas. O número 34 era mesmo ao virar da esquina.
Fios de fora, pastilhas coladas, o painel das campainhas parecia tudo menos algo que funcionasse, ainda assim, a do seu apartamento estava intacta.
Pressiono uma, duas, três vezes. Insisto. Vem me à memória a impossibilidade dela já ter chegado ali. Uma imagem dela, nua, estatelada nas rochas, com mar a lavar o sangue invade-me e as lágrimas caem sem que as consiga conter.
Perdi a conta ao tempo que tive o dedo sobre a campainha. Prestes a desistir, oiço uma voz do outro lado:

- Quem é???
- Inês? És tu??
- Você devia ter vergonha! Bêbedo!!! Não aqui nenhuma Inês, vá para casa ou chamo a polícia.
- Abre a porta Inês, ou rebento-a a pontapé!
- Mas você está parvo? Já lhe disse que não há aqui nenhuma Inês, e olhe que há mais de 20 anos que vivo aqui!

O tom sincero da sua voz desarma-me. Sem saber o que fazer, sento-me no passeio.
A chuva já não cai, o vento já não sopra. O que pode ter acontecido? Será que ela me mentiu? Como foi possível o senhor João não nos ter visto? E no farol? O que aconteceu?

De braços caídos, de coração desalentado, olhos mortiços e lábios a tremer, sinto uma mão tocar-me o ombro. Um toque que tão bem conheço.

- Vamos para casa?

Sem responder, levanto-me e acompanho-a.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo IX

- O que foi isto?
- Como assim?
- Desculpa, ainda não estou em mim.
- Oh António, deixa-te de cenas, fizemos sexo, nada mais. Vá anda para dentro se não ainda nos constipamos.

Pegamos as roupas do chão, totalmente encharcadas, e vamos para dentro do carro. Ligo o ar quente e tentamos em vão secar as peças mais importantes. Boquiaberto olho mais uma vez o seu corpo. Nunca gostei de mulheres consideradas perfeitas. Demasiado magras, demasiado esbeltas. Um mulher para mim tinha que ter curvas. Tinha que ser bela e não bonita, natural mas charmosa. Inês sempre tinha sido bonita, mas agora a idade tinha-lhe trazido a beleza. Os seios já não tão firmes, as suaves rugas de expressão, um pouco de celulite aqui e ali eram o sinal que ostentava: "Eu já vivi" e isso dava-lhe um encanto único.

- O que estás a olhar?
- Eu... nada. Desculpa esta tarde ter-te deixado assim lá, sozinha.
- Não faz mal, depois de tudo o que se passou, não te podia pedir mais.
- Sim...
- Mas então, conta-me, o que tens feito? És casado? Sempre te imaginei casado e com um monte de filhos... ai desculpa... esqueci-me.
- Não faz mal. É algo com que já aprendi a lidar. Não é o fim do mundo.
- Pois não, mas há 10 anos atrás era.
- Sete anos...
- Sim isso, é o mesmo.
- Não Inês, é o mesmo para quem não os passou a sofrer. Para quem tomou a decisão de partir sem dizer nada só pelo facto da pessoa que amava não poder ter filhos. Não é o mesmo para quem contou dias, horas, segundos na esperança que regressasses e me explicasses ao menos porquê????
- Eu sei...
- NÃO! Não sabes... Sai do carro!
- O quê? Tás doido? Chove a potes, estamos no meio de nenhures!
- Sai do carro Inês! Foi só sexo não foi? Queres que te pague é? Quanto é? Quanto levas por fazer isto??
- Eu não te admito António...

Nunca fui um homem corpulento, nem com muita força, mas tinha a suficiente para a empurrar para fora do carro.
Deixo-a completamente nua, naquele descampado e nem olho para o retrovisor.
Cego de fúria, cego de desilusão, cego pelo rancor que acumulei todos estes anos parto estrada fora sem remorsos.
Como é que ela ainda se atrevera a dizer que me amava?
Todo o ódio não chega para me tirar estas palavras da cabeça "Eu amo-te", batem e ecoam, voltam a bater e ressoam ainda com mais força.
De olhos marejados de lágrimas, dou meia volta em direcção ao farol.
A chuva está cada vez mais intensa.
Paro o carro, saio para a intempérie.

- Inês!!!!!
- Inês!!!!! Onde estás?

Só os trovões respondem.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo VIII

Saio do carro deixando-a semi nua. O temporal adensa-se dentro e fora de mim. A chuva cai em bátegas intensas e os trovões dançam com os relâmpagos a mentira que tentam passar de que não são simultâneos. Eu vivi nessa mentira durante todo este tempo. O amor que desejava não existia, e o senso comum só me deixou ver o que tinha diante dos olhos. A mágoa e o desespero não me deixavam ver mais além.
Aproximo-me da beira da falésia. A minha vontade é saltar, deixar tudo para trás. As minhas ilusões, os meus sonhos, a raiva e a desilusão. Sinto-me a tombar, sem saber se é só a minha vontade ou o vento que conspira pelo meu adeus a tudo.
Sinto os seus dedos a enterrarem-se no meu braço.
Com brusquidão puxa-me, atira-me para cima do capô do carro, abre-me a camisa, e beijando e mordendo, percorre-me o pescoço, as orelhas, o peito. Demora-se nos mamilos e, roçando a dor, arranha-me com um prazer que pelo seu olhar sei que é mútuo. Despe-se toda. Despe-me todo. Não conheço esta Inês que louca de prazer me possui.
Nus, em cima do carro, ela sobre mim, alheios à chuva e ao frio, ao vento e à tempestade que ameaça subir a falésia e salpicar-nos de sal, volto a senti-la, por dentro, e sabe-me bem a sua excitação. Sabe-me bem o seu gemer que se confunde com os trovões, sabe-me bem o frio que ignoro, pois por dentro todo eu sou um fogo que se deseja libertar nela. O mar começa a uivar, as ondas a baterem no seu compasso sem harmonia oposto ao compasso em que os nossos corpos chocam uma e outra vez, uma e outra vez, uma e outra vez. A luz dos relâmpagos ilumina a sua face rosada, sinto o seu corpo contrair-se, sinto dentro dela essas contracções. Não quero parar, não consigo parar. Um onda bate lá em baixo, o céu ilumina-se com um trovão ensurdecedor, e eu, vulcão em plena erupção não me contenho mais e sou teu... minha amante perfeita. Agarro-a nos ombros, e puxando-a para baixo, sinto o orgasmo mais prolongado que alguma vez senti. Não consigo parar de tremer, não quero deixar de a ouvir gemer.
No meio da tempestade fomos um só.
Ofegantes beijamo-nos. Ela deixa-se cair a meu lado e, deitados na chapa fria de um carro velho, de olhos semi-cerrados pela chuva que cai, dizemos em uníssono:

- Eu amo-te.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo VII

A caminho do farol o silêncio é o terceiro ocupante do velho Honda que conduzo. As luzes desenham formas curiosas no alcatrão e Inês parece-me atenta a isso. Não puxo conversa, não sei o que dizer.
O rádio toca, RFM como sempre, Oceano Pacífico a esta hora.
Reconheço a voz que nos envolve vinda das colunas mais velhas ainda que o próprio carro. Norah Jones...

Something has to make you run
I don't know why I didn't come
I feel as empty as a drum
I don't know why I didn't come

Perfeito... sinto que Inês leva delicadamente as mãos ao rosto para limpar uma ou outra lágrima.

- O teu carro está cheio de pó, entrou-me qualquer coisa para o olho.

Não digo nada, não queria que se sentisse mais fragilizada ainda.
Chegamos ao farol. A noite escura, o vento a sacudir o carro e a chuva em rajadas avisava-nos que o local tinha sido uma péssima escolha. Mas neste momento o mundo à nossa volta podia desabar. O nosso reencontro estava a acontecer.

- Chegámos...
- Sim. Inês, eu...

Sem me deixar continuar, sinto os seus lábios húmidos nos meus. Não sei se é a sua saliva que me beija se as lágrimas. Mas nada me importa já... quero-a tanto. Os anos que passei de corpo em corpo em busca dela parecem-me completamente vãos. Nunca senti nada assim com ninguém.
O seu corpo está diferente nas minhas mãos. Mais solto, mais ardente, mais desinibido. O carro que tanta vezes me viu a fazer amor com esta adolescente, presencia agora esta mulher que se fez à custa de Deus sabe lá o que...
Estiveste tão distante todos estes anos, sussurro-lhe ao ouvido.
Ela pára, olha-me nos olhos, beija-me longamente e, de olhos abertos fixos nos meus, entre lábios, diz-me, estive sempre contigo...

As palavras que mais ansiara nas tardes longas à janela em que esperei o seu regresso, não me sabem a muito... No meio de tanto prazer, de tanto calor entre nós, sinto que o tempo deixou a sua marca, e afinal, o amor que pensava eterno, diluíra-se na chuva dos dias...

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo VI

Entro no carro e, quando estou prestes a arrancar, o telemóvel toca.

- António, que se passa? A Joana telefonou-me a chorar, sem conseguir articular uma palavra. O que foi que aconteceu?
- A sua filha está grávida D. Cristina.
- O quê? Mas isso é... fantástico. Parabéns meu querido, mas porque chora ela? E, agora não me atende o telefone. Eu vou para aí.
- Venha sim D. Cristina, assim ela aproveita logo para lhe dizer quem é o pai!

Um silêncio sepulcral do outro lado do telefone diz-me que é melhor desligar.
As pessoas passam a vida iludidas que foram os melhores pais, as melhores mães, os melhores filhos, irmãos, mulheres ou amantes, mas quando a realidade lhes bate a porta não sabem como reagir.
Triste, arranco com o carro com destino incerto, curvo já com alguma velocidade e por pouco não atinjo o grupo de cães que ainda não perdera a esperança com a cadela frankenstein. No fim da rua há um semáforo que está vermelho, não abrando, o que poderá acontecer? Depois de um dia assim, nada mais me pode acontecer.
Ontem eu era um simples empregado de mesa, com o seu ordenado mínimo certinho, a sua companheira que mesmo sem amor o ajudava a passar as noites frias e um cesto cheio de recordações guardado numa arrecadação de que perdera a chave. Hoje não sou nada. Um homem traído pela companheira e pela vida a acelerar num rua molhada, de olhos marejados de lágrimas, a tentar fugir ao inevitável.
Travo a fundo porque alguém está na passadeira, o carro desliza e por pouco não atropelo aquela pobre alma que como eu vagueia.
Baixo a cabeça com vergonha. O vulto aproxima-se do carro. Limpo as lágrimas. Só o que me faltava, uma discussão para acabar o dia em cheio.
Faço o vidro deslizar até meio como precaução. Há uma graciosidade nos movimentos do estranho que me é familiar, um jeito que ao se aproximar começo a reconhecer. Sinto o coração parar quando me apercebo de quem é. Tantos anos passados sem uma notícia, sem uma novidade, e num dia só, é a segunda vez que nos encontramos.
Sem dizer nada, faço um gesto para ir à roda e abro-lhe a porta. Ela senta-se e eu sinto-me recuar anos. Aquele cheiro, aquele olhar, aquele sorriso, aquelas mãos.

- Onde queres ir?
- Vamos ao farol.
- Vamos...

Parto em direcção ao cabo sem pressas, como se a correria em que estive tantos anos tivesse deixado de repente de fazer sentido.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Sem Ti (R) - capítulo V

- Estás o quê?
- Estou grávida amor... vamos ter um bebé.

Sinto o sangue a fugir-me do rosto, a garganta seca, as mãos tremem-me e as palavras não saem. Todas as certezas, todas as garantias que sentia neste relacionamento se esfumam. Como um golpe fatal sinto todas as recordações daquela tarde com a Inês a invadirem-me. O verdadeiro motivo da sua partida, o porquê de não estar preparada. Deus tem um sentido de humor sarcástico. Brinca com a minha vida, faz de mim um peão nas suas jogadas, e agora, no mesmo dia, traz-me quem me abandonou, e faz-me abandonar quem eu pensava amar-me.

- Que se passa amor? Eu sei que não foi planeado mas... é um bebé, sabes que foi algo que sempre desejei.
- Eu sei, e o que vais fazer?
- O que vou fazer?
- Sim, vais abortar ou vais continuar com a gravidez?
- Decididamente és uma besta! É claro que vou continuar!!!
- Ok, eu sinceramente só quero que arrumes as tuas coisas e te ponhas daqui para fora! Vou ao café e quando voltar quero a paz que sempre desejei e que tu nunca me conseguiste ou sequer quiseste dar.
- António, não me faças isto... eu amo-te! Eu não tenho para onde ir!! Mas porque é que estás a reagir assim??

Nunca suportei ver uma mulher a chorar. Suporto melhor a minha tristeza que a dos outros. Deixo Joana num pranto, pego o casaco e saio porta fora.
A Lua, minha companheira de tantas noites, espera-me.
Deambulo mais uma vez sem destino.... sem norte e no fundo, sem sorte.
Hoje foi provavelmente o pior dia da minha vida, tal como tinha sido precisamente há 7 anos atrás.
Foi o dia em que a Inês me deixou.
Foi o dia em que fiquei a saber que não posso ter filhos.

Sem Ti (R) - capítulo IV

- Amor, temos que comprar pasta de dentes!

Não respondo. Tenho perto de 30 anos e nunca foi esta a vida que desejei para mim.
Quando era adolescente tinha sonhos. Olhava o calendário e o ano de 2009 estava cheio de sorrisos, desejos concretizados, amor, muito amor, filhos, e um gato.
Não tenho nada disso. O alarme tocou e eu acordei nesta casa despida de certezas e mobilada com todas as minhas dúvidas existenciais.
Tinha acabado de fazer amor, estava a chorar e a minha companheira dizia-me que era preciso comprar pasta de dentes. Onde está tudo aquilo que ambicionei?

Levanto-me do sofá, visto-me, acendo um cigarro e vou até à varanda.
Joana segue-me, primeiro com os olhos, depois com um toque no ombro, abraça-se a mim.

- Preciso falar contigo amor.
- Fala...
- Tenho uma coisa para te contar...
- Sempre conseguiste falar com a tua mãe?
- Não, mas não é isso.
- Então estás à espera do que? Há coisas que não podemos adiar. Vai lá telefonar-lhe
- Já telefono, espera.
- Não espero nada! Vai telefonar, ou mais uma vez vou ter que ser eu a tratar do assunto??
- Vai-te à merda... és uma besta!
- Desculpa... Desculpa... não ligues, ando com umas cenas na cabeça.
- Oh amor, fala comigo.

Puxo uma passa, afasto o olhar e as mãos dela. Olho a lua cheia... como explicar a esta pessoa que sempre me apoiou em tudo, que sempre esteve do meu lado e me deu a mão quando eu estava de rastos, que o meu coração nunca tinha sido nem nunca seria dela? E mais, que a sua verdadeira dona estava ali bem perto, no T1 do número 34...

- Deixa... o que me querias contar?
- Estou grávida....

Sem Ti (R) - capítulo III

Levanto-me sem lhe dar tempo de esboçar mais uma palavra sequer ou de me voltar a cativar com aqueles verdes longos olhos e saio porta fora.
O que parecia, ao acordar, o dia como todos os outros, estava a tornar-se no meu maior pesadelo. Não sei o que sentir! A raiva, a dor e o ressentimento, travam uma batalha sangrenta com o amor, o verdadeiro amor, a saudade, a paixão e a vontade. Neste momento não me sinto, não me encontro, não sei onde ir.
O céu chora comigo. A noite já caiu e a chuva gelada invade as ruas da cidade dormente como eu. Quem comigo se cruza nas ruas não imagina a chacina que vai dentro de mim, a batalha infindável desta guerra que eu julgava já terminada.
A paz não quer nada comigo.
Chego a casa.
Enrolada na toalha do banho, com o cabelo ainda molhado, a Joana parece-me perfeita. Aquela perfeição que julgamos ver em quem, apesar de não amarmos, já nos habituámos.
Aproximo-me dela, abraço-a, beijo-a, arranco-lhe a toalha do corpo.... os nossos cabelos molhados, os dela pela água que liberta e lava, os meus pela água que recorda, emaranham-se.
Dispo-me e deito-a na cama... agarro-lhe as coxas, beijo-lhe o peito... fazemos amor, sexo, paixão, instinto animal, seja o que for, nesse momento somos um só, e tudo parece fazer sentido. Nunca uma pessoa com quem já trocámos fluidos nos poderá ser indiferente. Fica sempre parte dela em nós e parte de nós nela.
Ofegantes, sorrimos, voltámos a ter um orgasmo em simultâneo, tantos meses depois...

- Venho já!
- Eu vou para a sala.

Ela dirige-se para a casa de banho e eu sento-me no sofá da sala. As lágrimas começam a cair e eu, não as consigo conter. Talvez não queira. Talvez não mereça. Neste momento todo eu sou Inês, pois foi com ela que a minha imaginação fez amor...

Sem Ti (R) - capítulo I

- Não compreendo essa tua obsessão por Rachmaninoff.
- Não esperava que compreendesses, aliás, duvido que compreendas seja o que for que esteja ligado ao Romantismo.
- O que queres dizer com isso?
- Nada...

Afastei-me, reparando no olhar misto de tristeza e incompreensão que me deitava.
A Joana era assim, eu não tinha o direito de a criticar. Há mulheres românticas e há mulheres que deitam os ramos de flores para o lixo. Ela era uma das últimas.
Saí porta fora, sem destino nem rumo. Queria simplesmente ser beijado no rosto por aquele vento de Inverno, de Janeiro, que tão bem sabe.
Sempre adorei o frio. Faz-me ser eu.
As ruas estavam desertas, à excepção dos cães vadios que buscavam a sua sorte com uma cadela cujo aspecto já tinha tido melhores dias. Os cães não são esquisitos, vão com qualquer uma, fazendo lembrar certos homens. No fundo, seremos assim tão diferentes? O que nos distingue dos animais é a cultura, a capacidade de nos regermos por valores, direitos e deveres e, perdido na divagação, entro no café do costume.
- Bom dia António!
- Boa tarde senhor João, boa tarde....
- Para mim só é tarde depois de almoçar
- Pois para mim é sempre tarde senhor João... e cada vez entardece mais.
- Hummm Joana?
- Que mais?...

Afasto-me para a mesa do canto. Hoje não me apetecem perguntas. Quero estar só. Fumar o meu cigarro, beber o meu café, mergulhar no meu desespero e decidir de uma vez por todas o que fazer.
Bebo o café de um trago, acendo o cigarro, puxo uma passa. Estou absorto em tudo o que vivi com ela. Todas as noites que passámos, a olhar a tecto, simplesmente a sentir que tudo estava certo. As madrugadas em que fizemos amor e as nossas respirações compassadas se uniam numa sinfonia intemporal...
Parece que foi há tanto tempo...
Envolvido, esboçando pequenos sorrisos, nem me dou conta do vulto que se aproxima de mim.
-Olá António! És mesmo tu?
Viro-me, sabendo já quem era. Aquela voz... até no fim mundo a reconheceria... senti-me gelar ao balbuciar:
- Olá....

Sem Ti (R) - capítulo II

- Dás-me um cigarro? Posso sentar-me?
- Senta-te...
- António Duarte... há quantos anos?
- Não sei, talvez anos demais.

Sentia-me morrer a cada palavra que pronunciava. Não me conseguia desviar daqueles olhos verde mar que tanto ansiara rever. Tinha feito telefonemas a amigos comuns, pesquisado na net em sites de dating e comunidades virtuais, e nada, tinha desaparecido sem rasto. Preparara vezes sem conta o discurso que queria ter quando a encontrasse, e agora, agora tinha-a aqui à minha frente e eu não sabia o que lhe dizer...
- Não me estás a conhecer? Não acredito.... não passaram assim tantos anos!
- Claro que te estou a conhecer. Não passaram anos, mas passaram muitas lágrimas. Como estás Inês?
- Estou bem, acabei de comprar casa. Aqui mesmo. Comprei o T1 do número 34.
- Procurei-te tanto...
- Eu tinha de ir António. Não me sentia minimamente preparada. Sei que errei e que te magoei muito. Mas... perdoas-me?

A sua expressão tornou-se mais meiga. A surpresa inicial tinha passado e olhava-me agora com aquele ar receoso de quem teme a resposta a um desejo.
Acho que foi pelos seus olhos que me apaixonei quando a vi pela primeira vez no metro. Recordo-me como se fosse hoje. A estação estava quase deserta e tínhamos ambos falhado o metro por segundos... O sinal sonoro das portas fora o nosso último passo. Lembro que ela me olhou, sorriu e disse, este já era. São só cinco minutos, respondi, e, no momento em que os nossos olhares se cruzaram, os cinco, passaram a dez, quinze, vinte, uma eternidade. E, de facto, assim foi....

- Já te perdoei há muito tempo Inês. Perdoamos sempre quem amamos. O mais difícil é perdoarmos-nos a nós próprios.
- Já li O Principezinho.
- E então?
- Já sei o porquê de me chamares raposinha.
- "Tornas-te eternamente responsável por aqueles que cativas"
- Sim...